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Contra “o carro fascista do ovo”

Tem um carro que vende ovos que passa praticamente todo final de semana na minha rua. Aliás, ele não é o único, pois antes ou após esse carro em específico costumam passar outros carros “do ovo” e, também, carros que vendem outras mercadorias. Acredito que assim como todos os outros carros “do ovo” que passam nas ruas de todo o Brasil ele tenha um conjunto básico de características comuns que os definem como tal: vendem uma certa quantidade de ovos por 10 reais (a quantidade e o preço podem sofrer leves variações dependendo dos efeitos da inflação e crise econômica do momento e em cada região); tocam um áudio gravado bem alto e estridente tentando chamar atenção não apenas pelo seu volume mas, também, pelo seu conteúdo (o que vai ser um dos tópicos importantes desse texto) muitas vezes cômico com músicas engraçadas, chamadas publicitárias populares, sons de galinhas ou algo do tipo; e por último, mas não menos importante; transitam bem lentamente pelas ruas para dar tempos dos moradores interessados ouvirem a gravação estridente, se arrumarem, pegarem o dinheiro etc. e encontrarem o carro ainda por perto.

O ponto desse texto não é nem ser um elogio nem um ataque a essa renomada e já tradicional instituição brasileira que é o carro “do ovo”, pelo contrário, não tenho nada contra ou a favor no geral, talvez se colocar na balança todos os pontos positivos e negativos eu seja mais a favor do que contra, mas enfim. O ponto aqui é que tem um carro “do ovo” em específico (para facilitar vamos chamá-lo de Judas) que passa na minha rua (não deve ser só na minha) que eu acredito que seja uma espécie particular de manifestação concentrada de todo esse momento que estamos vivendo no Brasil de predomínio dos grupos de extrema-direita, protofascistas, “conservadores”, fundamentalistas religiosos, empreendedores, milicianos etc. Aí você pode tomar um susto e me perguntar: mas como um simples e humilde carro “do ovo” pode manifestar, em sua mera existência e cumprimento de funções, tantas características do meio social político cultural econômico brasileiro e, ainda por cima, logo as características mais nefastas da atualidade?

Pois bem, um dos elementos chave que permite essa leitura é a estética própria da gravação tocada por Judas, estética que se diferencia em tantos aspectos dos outros comuns que passam por aí, que considero que provoque uma verdadeira e intencional ressignificação do carro “do ovo” como um todo; de tal modo que extrapola sua própria função econômica e se tenta, se esforça, para se tornar também símbolo e signo de algo maior. O que estou dizendo é: tais escolhas estéticas não foram e não poderiam ser acidentais, mas mesmo que feitas sem maiores preocupações ou cuidados, certamente tentam atingir e dialogar com um público muito específico de uma maneira muito específica, e é justamente nessa leitura de público e do povo que resultou nessa estética que encontramos todos esses elementos protofascistas e fundamentalistas que disse acima.

Vamos então para a descrição e análise dessa gravação tão peculiar. Alguns pontos se destacam: primeiro, o tom gritante de toda a fala, sei que é de praxe da maioria dos carros “do ovo” propagandearem sua mercadoria, seu preço, suas promoções, da maneira mais audível e chamativa possível, e nisso, Judas não faz nem inventa nada de novo. Queria destacar apenas, que, nesse caso, a voz feminina que faz os anúncios soa gritante a tal ponto que parece forçado, forçado no sentido de que extrapola um pouco o normal mesmo para esse contexto. Explico: um narrador de jogo de futebol tem que falar gritando, o cara do comercial das “Casas Bahia” tem que falar gritando, mas eles conseguem criar padrões identificáveis nessas falas, uma tonalidade própria que nos faz reconhecer e soar familiar cada um desses tipos de comunicação, o que permite, por exemplo, que alguém imite esse jeitão de falar. Já a mulher que fala nessa gravação parece gritar como se estivesse num palanque, num púlpito, soa mais como agitação das massas, um chamamento, do que um anúncio, soa fora do tom propagandístico até dos próprios carros “do ovo”, não é um tom divertido, não é simplesmente animado ou animador, é um tentativa forçada de ser e tentar parecer carismático demais. Tentar parecer carismático de maneira forçada não te lembra a maneira própria de se comunicar de nenhum político brasileiro em particular, não é? Continuemos.

Segundo ponto, a pronúncia marcadamente e repetidamente errada de certas palavras ao longo da gravação, como por exemplo: “temos ovos de CODÓNHA”, “venha, minha SINHORA, venha, meu SENHÔ” entre outros chistes e desvios menores, mas os citados acima são os mais marcantes e perceptíveis, pois que são repetidos várias vezes e da maneira mais gritante possível. Quero mais uma vez destacar a característica já citada no ponto anterior: o caráter forçado, artificial, fabricado, induzido e introduzido, nesse caso, para parecer e soar demasiadamente popular, para soar e ser familiar para com a “voz do povo”, o jeito “do povo” de falar. Pode parecer apenas como brincadeira e um jogo muito fácil de palavras, mas Judas não quer apenas ser mais um carro “do ovo” qualquer, ele quer ser o carro “do ovo” mais próximo, mais parecido, mais íntimo “do povo”, isto é, quer ser o carro “do povo”. Adicione esses dois elementos anteriores uma espécie de “apito”, “sinal sonoro” eletrônico que toca e indica o fim da gravação, sempre entre um loop e outro da gravação, que duvido muito que foi deixado lá despropositadamente e sim é mais um elemento com o intuito de criar e aumentar a estética Kitsch, propositadamente tosca, forçadamente simplista e demasiadamente popular. Mais uma vez a pergunta, forçar uma estética e um comportamento toscos de propósito para parecer ainda mais “do povão” não nos lembra mesmo nenhum político atual de destaque na política nacional?

Visto por um viés mais pragmático, essa é uma ótima estratégia de marketing e propaganda, mas visto através de uma leitura mais atenta ao funcionamento das ideologias correntes, pode-se perceber que ao tentar e para tentar se comunicar com “o povo”, esse povo, primeiro, precisa ser identificado, isto é, para se falar para o brasileiro comum é preciso primeiro identificá-lo, fabricá-lo em seus caracteres. Essa fabricação de uma certa identidade nacional com a qual a propaganda comercial e política vai se comunicar sempre foi, ao longo da história nacional, demasiadamente enviesada, seletiva e excludente. Pode-se citar como exemplo maior o estereótipo da família “Doriana”, famosa marca de Margarina que estampava em seus potes uma família branca rica heterossexual com um casal de filhos, o verdadeiro sonho de consumo da família tradicional brasileira, que não passa mesmo de um delírio da mente de uma certa elite. Mas, no caso específico da gravação de Judas, o povo que temos fabricado aqui e ao qual ela procura se dirigir é o outro lado, o lado oposto dessa sociedade retratada pela “Doriana”, um lado pobre, humilde, “do povão”, dos trabalhadores, daqueles que estão na base da pirâmide social. Sendo retratados então a partir de uma série de estereótipos recorrentes como o do uso informal da língua portuguesa cheio de “erros”, gírias e jargões populares, como um povo ignorante que precisa que “os de cima” se “rebaixem” para falar com eles, que são, sobretudo isso, o que precisam, os necessitados, os dependentes de qualquer migalha de ajuda, de socorro nas mãos de benevolentes políticos e empresários.

Vale ressaltar que nesse uso de estereótipos Judas não está sozinho, pois é comum na maioria desses carros que passam vendendo mercadorias pelas ruas dos bairros residenciais que sempre se dirijam, em seus anúncios, às donas de casa, que estariam sempre cuidando do lar e esperando seus maridos chegarem com a casa limpa e a comida pronta. Pois bem, ao enfatizar e utilizar uma comunicação artificialmente popular por meio de uma série de “erros de pronúncia” e erros técnicos, ao procurar e se dirigir a um público que seria caracterizado principalmente por suas deficiências educacionais, intelectuais, e sua constante necessidade de ajuda e de apoio e socorro por parte das forças e do atores maiores, Judas extrapola os intentos de uma propaganda e de um marketing eficientes, pois somado ao carisma forçado da fala essa gravação adentra fortemente num verdadeiro “populismo”. Como já é sabido pelos cientistas políticos do Brasil e do mundo, estamos vivendo uma nova onda de políticas e políticos que se cobrem desse manto tão poderoso do populismo e que, no Brasil, temos uma longa e problemática história dos encantamentos do nosso povo com políticos e políticas desse tipo, a tal ponto que podemos dizer que o populismo faz parte do DNA da política nacional, e que atualmente, talvez mais do que nunca ou mais do que em muitos anos, o populismo, a fabricação de uma identidade popular nacional, a intenção de falar para o povo na linguagem do povo etc. são alguns os mecanismos mais em uso nas mãos de um certo conjunto de novos atores políticos que surgiram e dominaram a cena nacional e internacional recentemente. Então, caros leitores, nenhum uso ou intenção populista é à toa ou gratuita. Mesmo que seja apenas para fins publicitários e propagandísticos o populismo traz consigo e em si uma carga de elementos ideológicos que não pode ser descartada e/ou desconsiderada na análise do jogo e do enfrentamento atual das forças. No jogo que se joga hoje, até mesmo uma simples mensagem de texto é uma arma nas mãos daqueles que podem e conseguem replicá-la aos milhões e para milhões a ponto de torná-la uma verdade incontestável. Se está difícil imaginar como um simples carro “do ovo” fazendo seu trabalho poderia fazer parte ou a diferença dentro de uma estratégia de disseminação em massa de uma política populista, faça um simples exercício de imaginação: se um outro carro “do ovo” passasse e se utilizasse de palavras como “minhas camaradas e meus camaradas”, ou enfatizasse que a produção foi feita em terras ocupadas pelo MST e ao comprar aquele ovo você estaria ajudando e financiando a luta popular pela revolução agrária?

Você ainda pode se opor a essa comparação dizendo que no caso do carro “do ovo” que efetivamente passa na rua esses elementos políticos e ideológicos que estou destacando são muito incipientes, fracos ou dispersos para serem tão efetivos e chamativos quanto estou fazendo parecer que são. Insisto, o fato de estarem lá, de fazerem parte da estratégia de comunicação, de usarem essa estratégia para funcionar (e está funcionando) em nosso atual momento social não pode ser usado para indicar sobre como estamos em quanto sociedade ou sobre a quantas anda nosso pacto civilizatório? Pode-se contrapor, entretanto, o fato de qualquer coisa, qualquer elemento, poder prestar-se a isso. Uma casa abandonada, uma rua sem asfalto, um córrego a céu aberto, qualquer coisa dentro de uma sociedade reflete ou se comunica com o todo das outras coisas e fenômenos sociais pelo simples fato de a sociedade ser complexa o suficiente para permitir um infinito número de relações. Contudo, que possa se relacionar qualquer coisa com outra coisa dentro da sociedade não é um argumento que inviabilize leituras orientadas por um olhar teórico com algum embasamento científico ou lógico. Isto é, os recortes que vão estabelecer as ligações entre certos elementos da sociedade com outros devem ser, eles mesmos, orientados por um pensamento que se proponha como explicativo e/ou elucidativo sobre esses mesmos elementos, de maneira que certas questões possam ser respondidas e certos problemas possam ser resolvidos a partir dessas relações. Ou seja, tendo o devido aporte teórico e científico, um simples carro “do ovo” pode aparecer como um exemplo interessante e significante de uma série de outros fenômenos sociais muito maiores e mais importantes do que ele; isto é, o carro “do ovo” é aqui uma espécie de epifenômeno social, um símbolo curioso a nos chamar a atenção para o alinhamento de certas tendências e movimentos que a própria sociedade está assumindo, fazendo uma espécie de desenho menor, um pequeno retrato de um quadro e de um jogo de forças muito maior. O que estou querendo dizer é que, com a leitura apropriada, é possível enxergar e entender que Judas só poderia existir e performar sua propaganda do jeito que faz dentro de um contexto social muito específico e que, portanto, pode servir e acaba servindo com um dos elementos constituintes desse próprio contexto social e com íntimas ligações que o conectam a um acontecimento maior, isto é, o carro “do ovo” extrapola sua significação particular porque é atravessado por uma série de outras significações maiores. De modo que, mesmo que nada e/ou nenhum dos elementos destacados aqui seja ou tenha sido produzido de maneira intencional pelo(s) seu(s) proprietário(s), mesmo que eles nem reconheçam esses elementos como tais, isso não significa que eles não estejam presentes e funcionem do jeito que funcionam, pelo contrário, o fato de que talvez sejam resultados e produtos inconscientes dentro de uma comunicação reforça e corrobora o porquê de funcionarem tão bem.

Dito tudo isso, resta um último ponto que quero destacar e que vai meio que coroar essa complexa e intrincada forma de comunicação, que é a gravação tocada por Judas, em seus propósitos protofascistas e fundamentalistas. A gravação é entrecortada por um hino religioso marcadamente evangélico de teor neopentecostal. A música no caso é “Tu és fiel, Senhor, eu sei que Tu és fiel” da cantora gospel Eyshila. Se não lhe for de prévio conhecimento, sugiro que, se for possível nesse momento, pare brevemente a leitura desse texto e procure (ou clique no link acima) ouvir essa música, pois vai ajudar a entender o que irei dizer a seguir.

Não é a música toda que toca no meio da gravação do Judas, são alguns poucos e significativos trechos, ou seja, além da escolha de tocar uma música, de que essa música seja um hino neopentecostal, ainda temos que tentar entender os destaques em si, isto é, por que daqueles trechos da música e não outros? O que eles têm de especial ou de diferente que os tornam aptos a um destaque e uma seleção para uso em uma propaganda? Começando pelo fato de tocar uma música, isso em si não é um elemento estranho na comunicação do carros que vendem produtos por aí, pelo contrário, é uma ferramenta muito comum e eficiente para a maioria deles, pois ajuda a chamar e a prender a atenção dos moradores e transeuntes; muito utilizado nesses casos também são os hits musicais do momentos, de bandas e cantores famosos, das mais recentes paradas de sucessos. O que é de se estranhar aqui é o uso em específico de um hino religioso, não seria estranho se fosse, por exemplo, um carro transmitindo o anúncio de um evento religioso, imaginemos uma paróquia contratar uma propaganda em que toque uma música do Padre Marcelo, faria bastante sentido e não seria estranho. Mas Judas não vende nenhum artigo religioso nem propagandeia nenhum evento de nenhuma igreja ou denominação em especial, é só um carro “do ovo” mesmo. Do que devemos subentender que o uso do hino religioso está vinculado diretamente a uma tentativa de aumentar o poder comunicativo da propaganda em si, isto é, ao se dirigir e se identificar com um público em específico tentar cativar e ganhar essa clientela para si. Não podemos dizer que essa estratégia está errada, pois não está sendo utilizada apenas por esse humilde vendedor de ovos, mas grandes figurões da política nacional tentam o máximo possível através de uma série de malabarismo retóricos e performativos colar sua figura junto à população cristã predominante no Brasil, principalmente a crescente e cada vez mais poderosa vertente neopentecostal. O que nos ajuda então a entender o porquê da escolha desse hino religioso em específico, tendo esse público como alvo existem algumas características chave que podem ser identificadas e com as quais esse hino e essa propaganda do ovo tentam se identificar e se comunicar. A primeira delas, e que reforça alguma das outras citadas anteriormente, é que o chamado “povo de Deus” depende totalmente dele, se coloca numa situação em que qualquer sucesso e qualquer resultado de algum esforço deve ser colocado na conta não exatamente ou apenas na pessoa de quem fez esse esforço e alcançou esse sucesso, mas principalmente na do Deus que se preocupa e ajuda seu povo.

Na já tão reconhecida e debatida teologia da prosperidade existe não apenas uma relação de dependência do cristão para com o seu Deus, mas, também e principalmente, a controvertida ideia de que se o cristão for fiel o suficiente, Deus meio que tem a obrigação, uma espécie de dever moral em forma de uma leitura muito particular de alguns versículos da Bíblia, de abençoar aquele fiel, fazendo da prosperidade símbolo da fidelidade, do sucesso (financeiro/político/social) do cristão a marca maior de sua fé (o que não deixa de ser uma interpretação muito curiosa de uma religião cujo Messias pregava que o rico deveria doar toda a sua fortuna se quisesse ter a chance de entrar no reino dos céus). O que nos leva a entender outra questão importante que levantamos, a seleção e o destaque de trechos específicos do hino na gravação. Alguns dos trechos escolhidos e repetidos à exaustão são esses: “Fiel, Senhor meu Deus fiel a mim”, que nos permite a interpretação possível da ênfase no caráter pessoal dessa relação do evangélico com seu Deus, da promessa pessoal de sucesso e prosperidade feita por Deus ao fiel, foco aqui no que está subentendido “Deus é fiel A MIM”; outro trecho é “Quero me alegrar, mesmo se o dinheiro me faltar”, que é interessante por ressaltar a apelar à constante e precária situação financeira da maioria da população brasileira, e quer adicionar um certo elemento de fetiche religioso ao simples ato de comprar ovos, pois ao falar para diretamente ao neopentecostal o vendedor espera estabelecer ou se imiscuir em uma relação profunda de comunidade e de rede de apoio e suporte mútuo que é a Igreja. No sentido de que está indiretamente dizendo meio que o seguinte: “olha, irmão, eu sei que você precisa de ajuda, que não tem muito dinheiro, mas eu também preciso de sua ajuda, eu estou fazendo o meu trabalho, fazendo a minha parte confiando que Deus irá me ajudar e me abençoar e dar o sucesso financeiro, e ele vai fazer isso através da sua ação, da sua ajuda a um irmão, ao comprar esse ovo, mesmo que você não possa comprar muitos, você está me abençoando e sendo o veículo da bênção de Deus, e ao fazer isso você será abençoado também; logo a minha prosperidade se torna a sua prosperidade também”. Por incrível que isso possa soar para alguns é mais ou menos essa a comunicação informal e até mesmo inconsciente que está sendo estabelecida naquele momento com um simples uso de algumas passagens musicais de um hino evangélico.

Pois bem, temos aí em apenas alguns minutos de gravação insistente, alta e repetitiva nas ruas de bairros e cidades por todo o Brasil uma curiosa mistura de comunicação carismática de viés populista com ajuda de uma religiosidade pautada pela busca da prosperidade que está sendo usada para simplesmente vender algo como um ovo. O problema na verdade é que essa mistura e essa maneira tão particular de se comunicar não está sendo usada apenas pelo Judas que passa pela minha rua todo final de semana, pelo contrário se tornou uma arma e uma ferramenta poderosíssima na mão de um determinado grupo político que surgiu e tomou de assalto recentemente a política do país inteiro. Se tornou a linguagem preferencial e forma oficial de se comunicar de todo um governo e, principalmente, da figura política que a encabeça.

Sim, estou falando do Bolsonaro e de todo o movimento social político e econômico que lhe é próprio, que lhe dá substância e força política, que o colocou lá, o Bolsonarismo e também com uma boa pitada de lavajatismo (com seus famosos procuradores e juízes “astros” que vivem fazendo aparições em Igrejas, pois são membros de destaque delas, sendo alvo de bênçãos e profecias de que sua caçada à corrupção salvará o país e o colocará nas mãos de Deus). Se você parar pra pensar existe uma relação íntima entre o discurso de combate à corrupção, que é sempre encarnada convenientemente por homens brancos e ricos que se dizem e se colocam como bastiões da virtude, e o discurso moralista de que o Brasil precisa ser salvo de um bando de comunistas, esquerdistas, ateus, abortistas, pedófilos e corruptos; e de que justamente essa salvação viria por meio desses. Seu propósito maior, segundo dizem, é fazer do Brasil um país cristão que respeita os valores tradicionais da família e da Bíblia. Isso é uma coisa muito louca, que tem todos os indícios de teorias de nível conspiratório altíssimo como as que rondam atualmente o cenário estadunidense como a do Q-Anon (e que tem muitas similaridades com ela), e pensar que todo esse incrível aparato ideológico religioso e paranóico foi e está sendo constantemente divulgado e espalhado diariamente em igrejas, empresas, assembleias legislativas e grupos de WhatsApp por todo o Brasil como se fosse a coisa mais normal do mundo, é um tanto assustador.

E aí você, caro leitor, me diz que quando Judas aparece na minha rua com a sua gravação tocando alto e por minutos a fio bem na porta da minha casa, eu não posso me sentir mal, aborrecido e transtornado como se estivessem tentando me enquadrar, me fazer aceitar, me alienar com tudo isso à força goela abaixo? Que eu não possa me revoltar, me indignar, de ter que ser forçosamente lembrado de que o meu país está tomando um caminho retrógrado, autodestrutivo, protofascista, golpista, e alinhado com países que são verdadeiros regimes autoritários fundamentalistas religiosos como a Arábia Saudita todo bendito sábado e domingo pela manhã, enquanto ainda estou na cama e tentando continuar dormindo? Bom, você pode argumentar que só eu me incomodo com isso e que ninguém mais está se apercebendo de nada disso que eu falei, mas posso retrucar que não apenas nutro uma certeza interna que tem muita gente ainda por aí que quando ouve ou se ouvisse essa gravação alguma coisa dentro delas também se desagradaria e que também sentem e/ou sentiriam um incômodo que talvez não saibam explicar o porquê. Digo mais: aqueles que simplesmente não perceberam ou se incomodaram é por que já internalizaram e normalizaram de tal maneira os absurdos e atrocidades da política atual que fizeram dessa linguagem a sua, de certa maneira ignorando a existência ou indo contra princípios como o da liberdade religiosa, pois afinal “o Brasil inteiro é cristão porque você se incomoda ouvindo um hino? Você é ateu ou comunista? Se for, logo é uma pessoa ruim e deve estar fazendo coisas erradas e pecaminosas como abortos e defendendo Stálin. Ou você é de outra religião e se incomoda de ver outra religião ser assumida como a oficial de um país que constitucionalmente é laico? Então o problema é você e sua religião que adora falsos deuses e demônios e esse incomodo é Deus agindo em você!”. O carro “do ovo” e deixa de ser apenas um veículo com fins econômicos e passa a ser um instrumento de disseminação e pregação religiosa de um projeto em grande escala de conversão nacional e supressão e submissão de minorias.

Mas, você está certo, caro leitor, sou apenas exagerado demais e faço leituras esdrúxulas do contexto social, o vizinho louco que se irrita tanto com um simples carro “do ovo” a ponto de chamá-lo de fascista (afinal chamar tudo de fascista é mania de esquerdista, comunista safado). Afinal, como eu já havia dito antes, não haveria nenhum problema e não aconteceria nenhuma reclamação ou violência por parte de nenhuma autoridade política e/ou religiosa se esse mesmo carro “do ovo” tocasse o hino da Internacional Comunista ou algum ponto de outra religião como a do Candomblé, não é mesmo? Por isso mesmo ele é apenas um simples e humilde carro “do ovo” que pode sair por aí de rua em rua tocando música evangélica e falando palavras erradas, é engraçado, para alguns, até bonitinho, inofensivo. Mas só para alguns, mesmo.

Para ilustrar meu pensamento vou deixar aqui pra vocês duas tirinhas do quadrinista André Dahmer: