Blablaísmo

Blá blá de qualidade

Archives

Contraopinião intensa

Cada arte tem suas técnicas de repetição imbricadas, cujo
poder crítico e revolucionário pode atingir o mais elevado
ponto para nos conduzir das mornas repetições do habito
às profundas repetições da memória e, depois, às repetições
últimas da morte, onde se joga nossa liberdade.

Gilles Deleuze, Diferença e Repetição

Uma das maiores tradições sociais humanas é a de contar histórias.

Em algum dado momento alguém percebeu a eficácia de passar informações, lições de moral, etiqueta social, cosmogonia, receitas e quase tudo aquilo que a imaginação der conta de ser interpretada, em versos.

Para que esses versos fossem efetivos, muitos autores se utilizaram de um recurso que, em um primeiro momento, pode ter se mostrado incômodo: a repetição.

Embora hoje tenhamos amplos recursos tecnológicos, teóricos e práticos, nem sempre foi assim. A repetição, tanto nas canções, quanto nos poemas, foi uma tática perspicaz de nossos antepassados na busca de deixar uma marca indelével do engenho humano nas artes em épocas que não era possível gravar tais obras, a não ser em suas próprias memórias.

Especificamente em português temos algumas heranças mais contundentes que se traduzem em figuras de linguagem como: Aliteração; Anáfora; Anadiplose; Concatenação; Epanadiplose; Epífora; entre outras.

Outro exemplo interpretado por um gigante da MPB:

Meu Limão, Meu Limoeiro

Meu limão, meu limoeiro
Meu pé de jacarandá
Uma vez, tindolelê
Outra vez, tindolalá

Wilson Simonal é eterno.
Um exemplo de repetição em canções.

Na literatura, um exemplo deste autor gigante:

“A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
— E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
— Onde a Caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.
— E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
— Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.”

Morte e vida Severina. Cabral de Melo Neto, JOÃO.

Para finalizar cito o autor Silvio Ferraz:

Para o senso comum a repetição é o resultado da apresentação de um objeto que já foi apresentado numa experiência cognitiva anterior. A constatação da repetição se dá a partir da identificação de elementos semelhantes e da criação de diversos graus de analogias entre o objeto que acaba de ser recebido e aquele que sobrevive enquanto memória e lembrança. Desse jogo de equiparações, o grau mais complexo parece ser o da analogia, é pela analogia que relacionamos elementos nem sempre facilmente relacionáveis por suas características gerais.

Tanto a repetição que identifica pelas semelhanças superficiais quanto aquela que envolve um certo grau de diferenciação podem ser vistas como repetição e garantem para grande parte dos compositores — e por conseqüência, dos ouvintes — que uma música se mantenha a mesma ao longo da escuta, do começo ao fim.

Em O Som e o Sentido, José Miguel Wisnik observa que a repetição musical
funcionou, na música do século XX como um divisor de águas. De um lado, alguns compositores evitando a repetição e favorecendo a diversidade em seus procedimentos composicionais; de outro, compositores fazendo uso de duas modalidades de repetição, uma circunscrita ao enunciado musical através do uso de ostinatos e outra relacionada à repetição de objetos musicais historicamente conotados. Distingue assim duas abordagens
composicionais, uma onde a imperava a diversidade no material sonoro empregado, cujo único índice de retorno ao passado se dava no uso de formas tradicionais ( contraponto medieval e renascentista e as formas clássicas utilizadas no serialismo), e a outra marcada pelo alto grau de repetição no âmbito do material sonoro, reiterando seus elementos e
fazendo uso de elementos musicais conotados em outra época e em outras culturas, como a linguagem tonal e modal, os ritmos de culturas tradicionais, as escalas orientais.

Dessa forma podemos notar que a repetição, rimas simples e até mesmo quando elas não possuem um sentido que ultrapasse a subjetividade do eu-lírico, são recursos que possibilitaram a evolução musical/literária e faz sentido que até presente data esteja arraigada de tal forma em nossa memória que fazemos uso destas ferramentas criativas para nos expressarmos das mais variadas formas.

Referência: FERRAZ, Silvio. Música e repetição: a diferença na composição contemporânea. São Paulo: Fapesp, 1998. Disponível em: http://sferraz.mus.br/musrep.pdf. Acesso em: 05 set. 2020.