Blablaísmo

Blá blá de qualidade

Archives

Crítica da série: Tales From The Loop

1.Expectativa

O serviço de streaming da Amazon, o Amazon Prime Vídeo, lançou nesse ano de 2020 a série “Tales from the Loop” (no Brasil, Contos do Loop). A série é baseada no livro de ilustrações homônimo do artista sueco Simon Stålenhag.

Apesar de não lembrar bem de como tomei conhecimento da obra, acredito que foi através de postagens no Twitter e depois em perfis do Instagram, lembro perfeitamente do encantamento que tive com aquelas imagens. Um mundo gélido, sóbrio e sombrio permeado de máquinas estranhas, enormes, cujos propósitos são desconhecidos, e os humanos pequenos, isolados, meio que perdidos em seu mundo que, de alguma maneira, não era mais tão seu assim.

Pesquisando depois, descobri que não apenas eu mais muitas pessoas foram atraídas para aquele universo, pois o livro inicial teve uma ótima recepção e foi seguido por mais dois outros e por um jogo de RPG de mesa; posteriormente os direitos do primeiro foram adquiridos para a realização da série e os do outro foi comprado pelos irmãos Russo, da franquia Vingadores, para a realização de um filme.

Não apenas isso, mas, procurando rapidamente na internet, é possível achar muitos escritos, relatos, até trabalhos sobre esse universo e essa visão tão especial do mundo que Simon Stålenhag coloca em seus desenhos. Pode-se dizer que existe alguma coisa neles que nos atinge profundamente, criando uma espécie de conexão silenciosa que nos faz querer entrar e conhecer cada vez mais daquele universo demasiadamente cinzento, mas permeado de significados ocultos, como se Stålenhag nos colocasse sempre à espreita, na dependência de apenas mais oportunidade de olhar por alguma brecha estreita e desvendar alguma intimidade, algum segredo.

Enfim, nem fiquei sabendo quando saiu o anúncio que a Amazon tinha comprado os direitos, mas quando saíram os primeiros trailers gerou-se uma pequena euforia entre os fãs e acabou aparecendo na minha timeline do Twitter. As primeiras impressões foram boas, parecia que tinham conseguido captar bem o clima, a atmosfera da obra original, e que contariam histórias que iriam nos colocar bem dentro daquele universo e nos revelar coisas novas.

Pois bem, a série estreou no serviço no dia 3 de abril, e só fui assisti-la esta semana. É uma série do tamanho padrão das atuais, com 10 episódios de mais ou menos 1 hora cada um, é possível maratonar e/ou terminar em alguns poucos dias. Quando assisti calhou de eu estar em uma sequência de leitura de obras de ficção científica como “Um piquenique na estrada” dos irmãos Arkadi e Boris Strugatsky, “Babel-17” do autor americano Samuel R. Delany, o filme “Stalker” dirigido por Andrei Tarkovsky e pode entrar nessa lista também a série “Dark” do Netflix; então, dado o meu grande apreço pelo material original e pela carência de boas e novas obras audiovisuais de ficção cientifica posso dizer que a minha expectativa e nível de exigência estavam acima do normal de um espectador comum que quer apenas assistir alguma coisa nova e diferente na TV ou que assiste qualquer coisa nova que aparecer só pra fazer valer a assinatura do serviço.

Contudo, nessa crítica tentarei ser justo com o material e me esforçarei para encontrar critérios objetivos para fundamentar o descontentamento e desgosto que acabei tendo após assistir a série.

2.Sobre ficções científicas e adaptações

 Acho que um dos pontos que mais influenciaram negativamente a série foi justamente o fato de ela se propor como uma adaptação ou como baseada nas ilustrações de Simon Stålenhag. O que soa bem irônico se você pensar que o único motivo da série existir, que o grande ponto de venda e chamariz de divulgação é justamente esse, de ser uma adaptação desse material. Isto é, se ela fosse lançada como um material original próprio, único e isolado, construindo seu próprio universo, fazendo talvez apenas referências e alusões a autores e obras famosas da ficção cientifica (como muitas séries atuais têm feito com o terror cósmico de H. P. Lovecraft e como sempre fizeram com Isaac Asimov e outros), teria muito mais méritos e menos críticas.

O que me prova esse ponto em específico é justamente o fato de que as críticas que vi na internet e no Youtube que analisaram e falaram da obra sem ter um conhecimento profundo do material original, falando da série por si mesmo e daquilo que ela apresenta, foram, em sua maioria, positivas e elogiosas. Ou seja, se você apenas cair de paraquedas na série sem saber que ela é baseada em coisa nenhuma você pode até gostar. Mas, se você veio por causa do material original e esperando encontrar mais dele na série, você vai ficar desapontado, principalmente em termos de carência de um verdadeiro espírito de ficção científica. Tenho meus motivos para pensar assim, e os apresentarei no caminhar desse texto.

Para começar e fazer sentido essas minhas afirmações tão categóricas e depreciativas é preciso falar um pouco mais sobre as ilustrações em si e sobre o universo que elas constroem. Infelizmente não tive acesso completo a todos os livros de ilustração de Simon Stålenhag, nem ao famoso jogo de RPG que ele ajudou a fazer, contudo, acompanhando há alguns anos pelos perfis nas redes sociais, pude ver o longo e gradual desenvolvimento e expansão daquele microcosmo e o quanto o autor tem o total domínio do que ele quer passar pois a obra como um todo é bem consistente em seus tons e temas.

O primeiro ponto que quero destacar das ilustrações são seus tons azulados, acinzentados, sempre escuros, sempre evanescentes. Não há uma presença forte de belos e ensolarados dias, nem paisagens tropicais como praias e florestas; isso fica mais inteligível se você considerar uma influência direta do fato de que Stålenhag é sueco e que essas são paisagens e cores que ele conhece e experiência em seu país, apesar de que as localidades retratadas nas ilustrações poderiam bem ser dos Estados Unidos ou do Canadá nas décadas de 70, 80, começo dos 90, algo assim. Mas, quero focar aqui que esses tons reforçam os significados de isolamento, tristeza, tédio, sobriedade, da chegada do outono, do final de um longo inverno, do bucolismo de uma pequena cidade ou dos subúrbios afastados. Isso tudo marca uma contenção nos ânimos, um certo aspecto voyeur de quem olha tudo um pouco de longe, de quem prefere se afastar e observar os carros passando.

O segundo ponto é o da presença dos elementos sci-fi e da relação dos humanos com eles. Pode-se dizer que as ilustrações de Stålenhag já seriam belas, intrigantes e comoventes o suficiente mesmo se nelas não aparecesse nenhuma máquina ou grande e estranha construção. Mas isso não significa dizer que tais máquinas e construções sejam acessórias à sua arte como um todo ou um adereço na construção da mensagem que quer passar. Pelo contrário, Stålenhag se torna realmente notável e um artista admirável porque nele, assim como em qualquer outro grande autor e/ou ilustrador de ficção científica, o elemento sci-fi é tão ou mais humano que os próprios humanos, isto é, a humanidade ou o fator humano da obra é atingido pelo elemento disruptivo da tecnologia avançada, das presenças alienígenas etc., funcionando como o verdadeiro coração da obra. No caso das ilustrações de Stålenhag, os humanos interagem com as máquinas, grandes equipamentos e construções tecnológicas cujas funções, propósitos e origem nos são desconhecidas, com enorme naturalidade e, até mesmo, displicência. Como se o visível contraste entre a tecnologia dos carros e das habitações e as hiper-futurísticas máquinas não fosse nem um pouco estranho e/ou assustador. Como se o que quer que aquilo fosse ou de onde aquilo viesse não fossem algo tão grande ou importante assim, na verdade meio que operando uma inversão, pois não é como se uma super avançada civilização viesse nos visitar ou que nos apropriássemos de algo super evoluído tecnologicamente, mas como se vivêssemos nas ruínas de algo muito maior que não entendemos ou não nos importamos muito e que usamos e nos relacionamos de maneira acessória, marginal.

Nesse ponto quero fazer alguns destaques e comparações com outras obras de ficção científica, justamente para poder esclarecer melhor o que disse acima sobre como o elemento sci-fi na série é muito fraco ou mal trabalhado. E já deixando bem claro que essa a maneira como eu entendo e aprecio a ficção científica e que não estou me colocando aqui como nenhum especialista e/ou doutor estudado no assunto e nem colocando ou tirando o rótulo de qualquer coisa na série. É só mesmo a maneira como eu encarei e percebi a série e meio que aquilo que para mim acabou faltando ou não sendo bem executado. Essas comparações vão servir como pontos referenciais críticos que nos permitam melhor visualizar que tipo exatamente de sci-fi Stålenhag faz em suas ilustrações e o que exatamente a série deixou de fazer.

Dito isso, o primeiro referencial que gostaria de colocar é com as obras de autores clássicos do sci-fi como Asimov e Arthur C. Clark. Falando de maneira bem genérica o que quero ressaltar é que em várias obras desses autores quando a humanidade realiza ou é exposta a um grande salto tecnológico ou descoberta científica o que acontece é uma transformação geral de panoramas, isto é, a humanidade como um todo em seus vários aspectos sofre um grande salto, coloca-se num outro patamar, como por exemplo a exploração das estrelas, desenvolvimento de IAs super inteligentes (e todos os problemas associados a isso), contato com raças alienígenas também inteligentes, algumas hostis etc. Ou seja, o que quero destacar aqui é que mesmo que as histórias tenham um foco mais fechado e isolado, em algum personagem, lugar, tempo etc (construindo assim um microcosmo) isso tem grandes e poderosas consequências para a humanidade como um todo (macrocosmo), essa pequena história de uma incrível descoberta que iria/poderia mudar tudo e, por ventura, acaba mudando tudo mesmo.

O segundo referencial que quer colocar é uma abordagem totalmente oposta, que é o da série “Dark” da Netflix. Nela o mecanismo da viagem no tempo e todas as suas imbricações e complicações permanece sempre fechado no microcosmo da cidade de Winden. A desconexão, operada pelos autores, entre as histórias da série e a história do próprio mundo (e da própria Alemanha) é tão grande e tão bem feita que mereceria uma análise à parte, mas vamos focar apenas no fato de que tudo o que acontece ali não parece afetar e nem ser muito afetado por quase nada do que acontece fora da cidade. Mesmo o tal do Apocalipse, fim do mundo etc, é mostrado unicamente do ponto de vista da própria cidade e nada é dito do resto do mundo. Se fossemos considerar isso do ponto de vista ficcional das obras e dos autores citados acima, poderíamos considerar essa desconexão como algo negativo, porém a construção do microcosmo de Winden com suas entrelaças histórias familiares é tão bem executada que esse ponto crítico fica ofuscado, isto é, os autores não nos dão muito espaço ou oportunidade para pensar o que quer que seja ou esteja acontecendo fora dali, pois nos mantêm tão imersos e absortos na sua narrativa labiríntica que não nos preocupamos com mais nada. Mérito total dos autores, produtores, diretores da série pois é visível o esforço para deixar tudo amarradinho, sem nenhuma ponta solta ou janela aberta que nos permita ou nos preocupe em ficar olhando para fora daquele mundinho de Winden.

Agora voltemos para as ilustrações de Stålenhag para seguirmos então finalmente para a análise da série em si. Num primeiro momento, pode-se dizer que Stålenhag trabalha apenas no nível de histórias microcósmicas, isoladas e fechadas em pequenos acontecimentos e momentos cotidianos nos quais o normal se mistura com o anormal do sci-fi, nesse nível de interpretação as imagens nunca extrapolam o campo do “algo aconteceu ali e morreu ali”, pois são quase sempre eventos corriqueiros cujo desdobramento não parece ir muito longe ou ter muito impacto na ordem geral das coisas. Contudo, como dito antes, a presença mesma dos artefatos e dos aparelhos hiper tecnológicos é uma parte essencial das histórias e as estranhas, incômodas, interações entre os humanos e esses equipamentos nos dão e nos abrem para uma leitura diferente das coisas. Pois podemos e acabamos nos perguntando como aquelas coisas vieram parar ali, pra que elas servem, como elas funcionam, porque todo mundo acha tão normal, se tudo aquilo foi um salto tecnológico humano ou se há algum elemento alienígena ou de outro mundo e realidade, ou, até mesmo, se aquela não seria uma outra realidade, uma realidade híbrida, uma porta aberta para o desconhecido. As pessoas aparecem imersas, presas, conectadas a aparelhos que talvez construam algum espaço virtual, mas ao mesmo tempo vagam, zanzam por aí, junto com estranhos robôs que hora parecem ter alguma função prática hora parecem estar tão perdidos quanto os próprios humanos. Enfim, percebemos que, o que quer que seja ou tenha acontecido na história desse o mundo como um todo foi afetado e que um dos maiores méritos de Stålenhag é justamente nos fazer enxergar esse Macrocosmo tão estranho a partir de histórias e momentos tão pequenos, comuns, cotidianos e íntimos (microcosmo). Ou seja, de um modo bem peculiar e próprio Stålenhag consegue realizar o melhor daqueles dois referenciais que citei anteriormente, isto é, nos dá um microcosmo bem trabalhado e nos abre para todo um universo de novidades, ao mesmo tempo que não é nem muito como “Dark” nem muito como um “Fundação” de Asimov, não ficamos presos dentro de uma Winden sem poder olhar para fora (aliás, analisando justamente por esse ponto, é como se em “Dark” olhássemos de fora tudo o que acontece dentro daquela esfera fechada de Winden, e em Stålenhag nós olhássemos presos de dentro da perspectiva de cada um das suas ilustrações mas conseguíssemos ver que aquele mundo se estende ao infinito), mas também não somos chamados a participar de grandes jornadas espaciais como em “Fundação”.

É justamente essa incrível proeza de se colocar nesse meio termo que Stålenhag acerta tão bem e nisso ele compartilha os méritos com outra renomada obra de ficção científica (que não sei se ele conhece muito ou sequer sabe que existe) mas, que eu tomei conhecimento e que me ajudou a apreciar ainda mais suas ilustrações que é o livro “Um piquenique na estrada” dos irmãos Arkadi e Boris Strugatsky. Quero colocar não apenas essas duas obras juntas, mas somar nessa perspectiva também o filme “Stalker” de Andrei Tarkovsky pois que este também se propôs como uma adaptação, só que do livro dos irmãos Strugatsky. Ou seja, me permitir falar um pouco mais sobre esse ponto de meio termo e de como se adapta ou não esse tipo tão específico de ficção científica.

Em “Um piquenique na estrada” – fiquem tranquilos pois o que irei falar agora não é nenhum tipo de spoiler, isso está na capa e na descrição do livro usada para venda – a humanidade é visitada por alienígenas em alguns lugares do planeta, a serem chamados de “Zonas”, mas ficam pouquíssimo tempo e não fazem nenhuma espécie ou tentativa de contato inteligente com os seres humanos. Os humanos vão então investigar essas “Zonas” e percebem que ali estão uma série de equipamentos estranhos cujo propósito e funcionamento são desconhecidos assim como acontecem nesses lugares fenômenos bizarros e igualmente inexplicáveis. Sem querer estragar muito a leitura do livro, que aliás recomendo muitíssimo, a mensagem da obra seria essa situação paradoxal em que algo incrível acontece em algum lugar com grandes consequências para a humanidade como um todo mas ao mesmo tempo esse algo é tão incrível que se torna incompreensível, ininteligível, que a humanidade não consegue realmente se apropriar ou mesmo medir a magnitude daquele evento sendo colocada na estranha e desconfortável situação de apenas conviver com isso, sem ter muito mais o que fazer ou ter para onde ir. Ressalto aqui justamente os paralelos com as ilustrações de Stålenhag: objetos estranhos que ocupam o espaço e a vida cotidiana mas que são ao mesmo tempo inexplicáveis; uma grande transformação da humanidade mas que ao mesmo tempo parece insuficiente, contida em si mesmo; o impacto traumático, confuso, que tais artefatos têm na vida das pessoas e na própria configuração dos lugares e dos espaços em que elas vivem e transitam, pois essas espaços deixam de ser seguros, normais, e passam a ser estranhos, habitados por alguma presença que não é dali, algo de outra realidade. É possível considerar esses dois universos quase como se fossem meio irmãos, mesmo que não haja nenhuma inspiração direta (o que não acredito que tenha mesmo) e isso nos oferece uma boa oportunidade de falar sobre adaptações dessas obras para outras mídias, dado que as duas passaram por esse processo e que o resultado e a mensagem obtidas pelas adaptações são questionáveis em ambas.

Falando bem brevemente e pontualmente sobre o filme “Stalker” de Andrei Tarkovsky, pode-se dizer que ele sofre do mesmo mal de outras grandes adaptações para o cinema de livros famosos nas mãos de renomados diretores do cinema como por exemplo aconteceu na adaptação do livro “O Iluminado” de Stephen King por Stanley Kubrick, isto é, o confronto entre um material original que é apreciado por muitos e a visão e o projeto autoral de um grande diretor que acaba fazendo o que quer com a obra e o filme acaba virando outra coisa, não necessariamente boa ou ruim, na maioria das vezes muito bom por sinal, mas, certamente, uma coisa diferente. No caso da relação entre Tarkovsky e a obra dos irmãos Strugatsky, pode-se dizer que não apenas o caráter fortemente autoral do cinema de Tarkovsky implicou em uma série de mudanças em relação ao material original como também pode-se culpar os vários problemas ao longo do desenvolvimento e produção do filme em si, como, por exemplo, a perda, durante a revelação, de vários rolos de negativos com muitas horas de gravações já feitas e com grande parte do orçamento já gasto, o que obrigou o diretor a fazer novas filmagens com muito menos tempo e recursos disponíveis para terminar o filme. Mais uma vez, não querendo dar nenhum spoiler sobre o filme e também já recomendando muitíssimo que assistam, vou trazer alguns pontos interessantes que nos serão válidos também para falar sobre a série. A primeira grande diferença notável entre livro e filme nesse caso é a inserção de uma discussão a nível existencial e religioso dentro da história. Inserção que aparece de maneira muito marcante com discussões entre um personagem que encarnaria a ciência, outro que encarnaria a religião e um outro que encarnaria uma postura niilista; o que denota uma introdução de caráter tradicional muito particular da literatura russa, em autores como Dostoievski, e do forte espiritualismo do próprio diretor. Essa discussão existencial e religiosa, somada a uma reconfiguração da narrativa a partir de personagens e de uma incursão que não existem no livro (assim como é deixada de lado a cidade em que tudo acontece e os seus diversos agentes) o que resulta em uma grande diminuição, ou podemos falar até mesmo de uma perda do elemento sci-fi em si mesmo, que de tão escamoteado como um detalhe da narrativa que acaba por se tornar supérfluo e substituível por um elemento místico/mágico/sobrenatural qualquer que não impactaria substancialmente na narrativa do filme. Ou seja, “Stalker” acaba sofrendo do mesmo mal que apontei no começo sobre a série, você vai para o filme esperando encontrar algo do livro e acaba se deparando com algo totalmente diferente, que, discutido pelos próprios méritos, o filme é muito bom, Tarkovsky é um diretor maravilhoso, mas como adaptação é uma obra bem questionável.

3. Sobre a série, enfim

Feitos todos esses apontamentos, posso então me dedicar a um comentário sobre a série fazendo com que todos os destaques necessários sejam inteligíveis para você, leitor.

O primeiro deles é: copiar uma estética não é copiar um espírito.

O que percebi na série foi que os produtores e diretores tiveram muito cuidado e atenção em reproduzir da maneira mais semelhante possível os aspectos visuais das obras originais achando que com isso ou que só isso seria suficiente para recriar e reconstruir em outra mídia todos os aspectos essenciais. O que foi um erro grosseiro em se partindo de profissionais que deveriam saber, ou terem sido instruídos em algum momento de suas carreiras e estudos, que uma obra ficcional e literária é mais do que o seu conjunto de caracteres, isto é, a obra em si tem um espírito que está presente em sua organicidade, que vive nas suas disposições, que se enxerga e se lê no seu caminhar, ao longo de sua própria leitura e que, quando você que transpor algo desse espírito para um outro meio você precisa se atentar justamente para esse caminhar, para essa disposição e organicidade que fazem a obra original respirar. Se você não se atenta a esses elementos particulares de cada obra e autor você acaba virando um imitador barato. Um seguidor do estilo, mas não do espírito. Quero deixar claro que não estou advogando aqui acerca da impossibilidade teórica ou prática de qualquer tipo de adaptação e ou tradução de um material original, sei também muito bem do lema da tradução que diz que “traduzir é trair”, e que nunca haverá uma tradução ou adaptação perfeitas porque isso é impossível. O que estou querendo dizer é algo mais próprio das continuações e das continuidades, das características que tornam homogêneas uma escola artística ou uma tradição, isto é, a presença de certos elementos comuns que permeiam obras diferentes, mas as fazem irmãs, que as tornam próximas dentro de um mesmo universo. Enfim, para mim a série “Tales from the Loop” não está dentro do mesmo universo das ilustrações de Stålenhag por mais que pareçam estar e se esforcem para parecer que estão, mas é isso mesmo, um esforço de parecer que é igual a outra coisa, sem entender que deveria pertencer a um universo comum, compartilhar mais do que elementos visuais a estarem presentes ao longo de algumas cenas, mas fazerem parte da linguagem que constroem e se contam aquelas histórias.

Não sei se já deu pra perceber, mas estou dizendo que, se você assistir à série você encontrará elementos familiares as ilustrações de Stålenhag, você tem lá as cores e os tons amenos, pastéis, escuros, o clima bucólico de cidade pequena, de subúrbios, o isolamento, o silêncio, as paisagens, as máquinas estranhas, enormes e despropositadas, os robôs etc; fizeram um bom trabalho de reconstruir essas imagens 2D em elementos 3D, parabéns pra eles. Mas não é só com peças que se jogam os jogos, é preciso regras. Todos esses elementos na série não são incorporados de maneira suficiente e substancial nas histórias que a série conta, eles estão lá, os personagens interagem e agem sobre aquelas paisagens, mas elas podiam ser substituídas por qualquer outra coisa, você pode tirar todo e qualquer elemento sci-fi e substituir por um mundo mágico ou misterioso que as histórias funcionariam do mesmo jeito, talvez até ficassem melhor. Os autores, produtores e diretores da série até têm boas histórias para contar, mas não são histórias que necessariamente tenham alguma coisa a ver com aquele mundo, não há relação profunda entre o incrível universo criado por Stålenhag em suas ilustrações e as histórias que vemos em cena durante a série, parece que na verdade é apenas um cenário, um fundo, uma desculpa para contar e falar de outras coisas, mas não daquele mundo. Me parece que todos eles não foram instruídos nem tiveram um contato ou um interesse profundo no material original, parece mais que usaram como um artifício para chamar um público maior para uma nova série, um chamariz somente.

Digo mais, talvez se não houvesse essa necessidade de tentar emular ou imitar o material original algumas das histórias ficariam até melhores, talvez pudessem ser contadas histórias com uma verve diferente das que foram contadas, uma vez que a necessidade de se prender a um clima opressivo, depressivo que enxergaram como características distintivas do material original falou mais alto em vários momentos da série e isso não teve resultados tão positivos assim. Para mim, eles deram uma olhada rápida no material original gostaram ou identificaram o que seria de mais gosto dos fãs (como por exemplo, os robôs) e ficaram nisso, tem que ter esse elemento, esse clima pesado e cinzento com cores pastéis e umas histórias tristes costurando tudo isso.

Quero chamar a atenção justamente para isso, colocaram as histórias para costurar e dar uma liga pra esse universo da série, mas fizeram isso muito mal e com muito menos cuidado e atenção do que fizeram por exemplo os produtores de “Dark”. Isso foi uma escolha, ou seja, em vez de constituir e aproveitar para expandir aquele universo das ilustrações, usando aí toda a vantagem do audiovisual que é a imersão, isto é, é um mundo 3D, os personagens podem ir até o fundo das imagens e daquele mundo e a gente ir junto com eles. Os produtores, provavelmente para economizar recursos, se mantiveram fechados em uma cidadezinha (a série tem sua própria Winden) deixando o trabalho maior de construir aquele mundo para as narrativas dentro desse espaço fechado, mas foram bem preguiçosos com essas histórias. Pois estas não se apropriaram substancialmente daquele mundo que nós encontramos nas ilustrações, tanto que, na maioria delas, se não fossem por um ou outro elemento visual destacado repetidamente (fica até cansativo e monótono dada a pouca variedade, o que é um crime com o material original que é prolífico e vasto) você nem diria que se passam ou que teriam alguma coisa a ver com o material fonte.

Sobre as histórias em si a série fica bem no mais ou menos, poucas se destacam e a maioria é fraca. Mais uma vez pega aqui a demasiada necessidade de emular um clima opressivo e solitário, mas que não tem muita (na verdade nenhuma) razão de ser dada a desconexão com o mundo em si. É muito esperto da parte dos autores, produtores e diretores da série usarem uma incapacidade e deficiência de explicações, sentidos, motivos (um vazio narrativo) como se fosse algo misterioso, oculto, perigoso. Mas uma coisa é ter algo grande escondido e só deixar o espectador/leitor ver a sombra disso (e fazer ele morrer de medo ou se encantar), e outra coisa é ter um vazio criativo e financeiro e acobertar com histórias e personagens que abusam dos silêncios, da incapacidade de se relacionar e de problemas afetivos de maneira tão gratuita que fica forçado a tal ponto que você começa a achar que deve ter algo na água daquele lugar pra deixar todo mundo tão atordoado e ensimesmado assim (ou seja, o espectador transforma em comédia o que era pra ser tragédia). Os autores querem fazer parecer que todo o mundo tem uma tragédia, uma desgraça, um evento misterioso e inexplicável por trás desses comportamentos depressivos e estranhos, e que essa nossa curiosidade seria então o motor da série, mas simplesmente da forma jogada que eles fazem isso não é suficiente.

Então muito tempo se perde e vários episódios passam onde apenas um elemento referencial ao original é introduzido, esse elemento faz/tem propriedades, consequências fantásticas, misteriosas, “interessantes (mais uma vez cito aqui que não precisava nem ser tecnológico ou alienígena ou do universo do Stålenhag) que vão mudar a vida de certos personagens de maneira e com consequências mais ou menos previsíveis (com uma pitada ou outra de boas sacadas), mas tudo isso sem precisar ou sem vontade de explicar nada ou relacionar coisa com coisa deixando tudo em aberto como um artifício, uma isca, de que “será que vão mostrar mais ou simplesmente, mostrar alguma coisa?” Não vão. Essa é a fórmula da série e de todos os episódios até mesmo dos melhores.

E mais uma vez, e talvez o erro maior da série que a prejudica seriamente enquanto uma obra considerada isoladamente é que uma vez que se escolhe e se colocam as narrativas dos personagens como motor principal da série e como o elemento que vai dar liga a todo aquele universo (centrando-se, por exemplo, em uma família especificamente), nem isso eles fazem de maneira competente, porque tudo é tão incidental, tudo acontece tão à margem, tão deslocado, tão isolado e silenciosamente, que não se criam realmente raízes nem ligações fortes o suficiente entre os personagens em si e entre nós, espectadores, e eles. A série perde muito com esses silêncios forçados para parecer mais sombria do que de fato é. Ganharia muito mais criando outros percursos e deixando alguns personagens interagirem e dizerem mais uns com os outros e com o ambiente em si, mesmo que seja o da própria cidadezinha. Como, por exemplo, o faz muito bem feito a já citada série “Dark”. Fica tudo muito trabalhado meio que “por cima”, todos os relacionamentos parecem demasiadamente superficiais, e como toda a “cola” da série depende desses relacionamentos isso acaba enfraquecendo o conjunto como um todo.

Um último elemento comprometedor é o ritmo arrastado, elemento esse que a comparação com o filme “Stalker” de Tarkovsky nos permite elaborar a problemática muito bem. Arrastado e lento numa obra audiovisual nem sempre são características negativas, pois se bem trabalhadas dão o tempo e o respiro necessário para processar certas experiências e informações e adicionam peso e sentido a momentos e sentimentos que exigem uma parada para a contemplação, tudo isso pode ser aplicado perfeitamente a “Stalker”, pois, nas mãos do renomado diretor russo, cada take e sequência onde nada parece estar acontecendo e todos os longos silêncios entre os poucos mas ricos diálogos são prenhes de uma melancolia e espiritualidade que lhes são muito próprias de toda a sua filmografia e da literatura russa em geral. Ou seja, tem como fazer o silêncio ficar bonito e simbólico (por mais que alguns achem simplesmente chato), mas tem que saber fazer direito. Contudo, é isso, mais uma vez, que os produtores de “Tales from the Loop” parecem ter tentado imitar, mas sem muito sucesso.

São vários os momentos contemplativos e silenciosos na série, em que os personagens estão simplesmente andando ou fazendo alguma coisa por aí, muitas vezes em enquadramentos que tentam reproduzir as cenas das ilustrações originais de Stålenhag, mas isso me soa e acaba parecendo com um retrocesso covarde dos produtores que sem saber o que fazer e como aproveitar os recursos próprios de seu meio audiovisual se satisfazem imitando a outra mídia. Entendam, são duas coisas bem diferentes aqui, pois uma coisa é um diretor como Tarkovsky, que é um verdadeiro mestre do cinema, construir toda uma narrativa de evocação e de transformação espiritual onde a relação com o mundo e seus milagres nos dão um olhar curioso e, ao mesmo tempo, desesperançoso e desesperado sobre uma determinada localidade; e outra coisa é ter a verdadeira mania de usar a câmera o tempo inteiro para conseguir efeitos semelhantes aos de um quadro ou ilustração. Nos dois casos as técnicas cinematográficas são parecidas, mas os efeitos e os significados alcançados são bem diferentes.

Não estou dizendo que para ser melhor a série precisaria necessariamente de cenas de ação cheias de movimento, explosões ou efeitos, ou encher a cenas de longos e intricados diálogos ou de monólogos existencialistas, nada disso combinaria muito bem nem com o tema nem com o tom da série. É mais uma questão de saber construir os momentos em sua significação própria, a direção não é chamada de arte à toa, pois é realmente necessário todo um escopo de habilidades e de conhecimento para saber e elaborar um sentimento, uma emoção, para passar a mensagem certa no momento certo, para dar o peso certo a cada cena, a cada gesto. Não estou dizendo que é fácil nem que são simples as respostas, mas que é disso que a série tanto precisa e acerta tão pouco, e mais, estou dizendo também que quando ela acerta, ela acerta em cheio, pois existem alguns episódios genuinamente bem dirigidos e com histórias maravilhosas, apesar da inconsistência ser muito grande. Parte disso pode ser explicado pelo fato de que cada episódio é dirigido por uma pessoa diferente, mas pode-se atribuir muito disso também a falhas na elaboração de um roteiro mais bem amarrado com histórias intrincadas e interessantes; e pela pouca ou quase nenhuma ousadia da produção de construir e de expandir um universo tão rico quanto o do material original.

4.Recomendação

Nem tudo são erros em “Tales from the Loop”, pois apesar de todas as críticas acima é possível ter uma boa experiência com a série, se divertir e se emocionar satisfatoriamente. E isso porque ela é, no geral, muito bem produzida, tem um bom elenco com uma boa atuação e conta algumas belas e tristes histórias que não são de todo previsíveis, sendo, portanto, plenamente capaz de nos entreter e fazer prender à tela da tv (ou do celular, que foi o meu caso).

O valor da série também aumentará consideravelmente se forem seguidos os pontos que destaquei no começo do texto, isto é, se quem assistir não tiver nenhum contato ou informação adicionais sobre os materiais (ou já souber que não vai encontrar muito dele) e não for procurando (ou sequer souber que é) uma obra de ficção científica. Ou seja, se você for de cabeça aberta, sem preconcepções, querendo apenas ver um material novo e interessante, com algumas coisas curiosas e histórias estranhas, você encontrará uma boa série aqui.

Também não chegaria a dizer que é uma série para todo mundo, pois, como já foi falado acima, ritmo arrastado, os tons sóbrios e a pegada mais depressiva e silenciosa da série pode não agradar pessoas que ficariam mais felizes vendo alguma série com mais ação e aventura. Quanto a isso posso e já aproveito para recomendar uma outra série de ficção cientifica disponível no catálogo da Amazon que é a “The Expanse”, que é toda trabalhada no sci-fi clássico, tem um orçamento e uma produção razoáveis e várias temporadas disponíveis para quem quiser maratonar; não é perfeita, mas cairá como uma luva para quem torcer o nariz para “Tales from the Loop”.

No geral posso dizer que meu veredito para a série é um “Bom/Razoável”, que não é tudo isso, não é essa maravilha toda que alguns vídeos do Youtube estão falando por aí como se fosse a próxima grande série da Amazon pra bater de frente com uma “Westworld” da HBO, nem acredito que ela se propõe a tudo isso. Está mais para uma tentativa um tanto tímida e certamente não muito cara de gerar algum material original de qualidade para enriquecer e aumentar o catálogo original da Amazon e, com isso, garantir mais algumas assinaturas.

De resto fica apenas o desapontamento por e para tudo o que essa série poderia ter sido, criado e trabalhado a partir de um material original de tão grande qualidade e com tantos fãs. Fica a esperança que a série tenha uma boa recepção e audiência, e que com isso garanta uma continuação que permita aos produtores serem mais ousados e dar passos mais seguros para dentro do “Loop”. Ainda que tudo dê errado e todas essas previsões não vinguem ainda há a esperança da futura, e ainda sem nenhuma informação, adaptação dos irmãos Russo, o que não é promessa pouca e já gera altas expectativas nesse que vos fala.

No mais, sempre teremos e podemos voltar para os livros de ilustração Stålenhag que continua a expandir seu universo próprio assim como o número de fãs do seu trabalho.